E aqui estamos nós, 75 anos depois, descobrindo que ele não estava sendo
pessimista demais. Estava sendo otimista.
Winston Smith é o protagonista que todos nós merecíamos, mas que nenhum de
nós quer ser. Ele trabalha no Ministério da Verdade – nome que por si só
deveria ganhar um prêmio de ironia fascista – onde sua função é literalmente
mentir profissionalmente. Reescrever a história, apagar pessoas
inconvenientes dos registros, transformar derrotas militares em vitórias
gloriosas.
Imaginem só: um funcionário público cuja única função é manipular
informações para que combinem com a narrativa oficial do momento.
Completamente absurdo, né? Jamais veríamos algo assim no Brasil
contemporâneo, onde assessores presidenciais reescrevem dados de
desmatamento e mortes por COVID-19. [inserir aqui uma risada amarga e um
olhar significativo para a câmera inexistente]
Winston tenta desesperadamente manter sua sanidade e memória num mundo onde
o passado é fluido como discurso de político fascista em campanha. Ele se
lembra quando o chocolate era melhor, quando os números da produção eram
diferentes, quando o inimigo era outro. Mas suas lembranças constituem
crimes – “crimideia”, no vocabulário Orwelliano.
A luta de Winston é intensa, dolorosa e, spoiler alert, fadada ao fracasso.
Porque esse é o ponto: 1984 não é uma história de resistência heroica. É um
estudo de caso sobre como o autoritarismo – seja ele vermelho, marrom ou
verde-amarelo – não apenas controla corpos, mas devora almas
sistematicamente.
Novilíngua: Quando a Linguagem Vira Arma de Destruição em Massa
Se tem algo que Orwell entendeu com precisão cirúrgica foi o poder da
linguagem como ferramenta de controle social. A Novilíngua não é apenas um
idioma simplificado – é a eliminação sistemática da capacidade de pensar
criticamente. Uma técnica que funciona igualmente bem para stalinistas e
fascistas, diga-se de passagem.
Quando você remove palavras como “liberdade” do vocabulário, quando
transforma “paz” em sinônimo de “guerra”, quando faz “amor” significar
“ódio”, você não está apenas mudando termos. Altera a própria estrutura do
pensamento humano. É impossível conceber aquilo que você não consegue
nomear. (Se você está se interessando por como a linguagem vira ferramenta
de controle, recomendo conferir nossa análise de outras distopias clássicas
que exploram esse tema).
E olha, não precisamos ir muito longe para ver isso em ação. Quando
fascistas brasileiros chamam ditadura de “revolução”, quando transformam
“golpe” em “impeachment técnico”, quando “fake news” vira sinônimo de
“qualquer informação que me incomoda”, estamos vendo a Novilíngua em tempo
real – e desta vez aplicada pela direita.
Mais perverso ainda: quando projetos de lei fascistoides tentam proibir
discussões sobre diversidade sexual e identidade de gênero nas escolas,
estamos literalmente vendo a estratégia Orwelliana de apagar conceitos da
linguagem para apagá-los da realidade. Se você não pode falar sobre famílias
homoafetivas, se não pode mencionar pessoas trans, se não pode sequer usar
as palavras “orientação sexual”, então essas realidades deixam de existir no
discurso oficial.
É a mesma lógica do Partido: controlar a linguagem para controlar o
pensamento, controlar o pensamento para controlar a realidade. E funciona
independentemente da cor da camisa do ditador.
O Grande Irmão Digital: Vigilância Voluntária na Era dos Smartphones
Winston vive sob constante observação das “teletelas” – dispositivos que
transmitem propaganda 24 horas por dia e observam cada movimento dos
cidadãos. Elas estão em todos os locais públicos, na maioria das residências
privadas, até mesmo no quarto secreto que Winston aluga para seus encontros
clandestinos.
A diferença entre 1984 e 2025 mostra que Orwell imaginou um Estado impondo
vigilância à força. Nosso autor não previu que abraçaríamos isso
voluntariamente, pagando mensalidade para carregar nossos próprios
dispositivos de monitoramento no bolso.
Seu smartphone sabe onde você está, com quem fala, o que compra, que sites
visita, que vídeos assiste. Governos autoritários ao redor do mundo
monitoram apps de relacionamento LGBT+ como Grindr e Her para identificar e
perseguir pessoas LGBTQ+. Campanhas políticas compram dados de localização e
usam essas informações para microtargeting de propaganda.
Fazemos isso de bom grado. Entregamos nossa privacidade em troca de
conveniência, entretenimento e a ilusão de conexão social. O Grande Irmão
dispensou a imposição – alguém o gamificou.
Duplipensar: A Arte de Acreditar em Contradições Simultâneas
Uma das criações mais brilhantes (e aterrorizantes) de Orwell é o conceito
de “duplipensar” – a capacidade de manter duas ideias contraditórias na
mente simultaneamente e acreditar em ambas. Uma habilidade que fascistas
modernos dominaram com maestria.
Defensores da “família tradicional” apoiam políticos que traem esposas
compulsivamente. Pessoas clamam por “liberdade de expressão” enquanto tentam
censurar livros em bibliotecas. Outras gritam “meus direitos” enquanto votam
para remover direitos de outros grupos.
No Brasil fascistóide de 2025, o duplipensar virou modalidade olímpica.
Temos eleitores defendendo “menos Estado” enquanto pedem mais intervenção
estatal na economia. Pessoas clamando por “ordem e progresso” enquanto
apoiam o desmonte sistemático de instituições educacionais e científicas.
Grupos marginalizados votando em candidatos que prometem explicitamente
prejudicá-los.
O duplipensar funciona porque o cérebro humano odeia dissonância cognitiva.
É mais fácil racionalizar contradições do que enfrentar a realidade incômoda
de que talvez estejamos errados sobre algo importante. E os fascistas sabem
disso melhor que ninguém.
O Ministério do Amor: Quando a Tortura Vira Terapia
O Ministério do Amor é onde Winston é levado para ser “curado” de sua
dissidência. Não é um lugar de execuções sumárias – é muito mais sofisticado
e assustador que isso. É onde almas são quebradas metodicamente até que o
prisioneiro não apenas obedece, mas genuinamente ama seu torturador. Técnica
que funciona igualmente bem em porões da KGB ou em dependências do DOI-CODI.
O Brasil tem sua própria história sombria com métodos de tortura psicológica
institucionalizados. Durante a ditadura militar fascista (1964-1985), o
aparato repressivo não se contentava em silenciar dissidentes – os
torturadores queriam quebrar as vítimas internamente, fazê-las trair amigos
e renunciar às próprias convicções. Exatamente como no Ministério do Amor
Orwelliano.
Para sugestões de leitura sobre esse período, recomendo “Brasil: Nunca Mais”
(Projeto coordenado por Paulo Evaristo Arns) e “A Ditadura Escancarada” de
Elio Gaspari. Não é leitura fácil, mas é necessária para entender como
métodos orwellianos foram aplicados na prática por fascistas brasileiros.
Hoje, a tortura física deu lugar largamente a cancel culture de direita,
doxxing, perseguição online e isolamento social. O objetivo permanece
idêntico: não apenas silenciar a dissidência, mas fazer o dissidente se
odiar por ter ousado discordar. Os fascistas modernos apenas refinaram as
técnicas.
Amor é Crime: A Destruição da Intimidade Humana
Uma das dimensões mais devastadoras de 1984 é como o Partido destrói
sistematicamente a capacidade humana para amor genuíno. Winston e Julia se
encontram secretamente, mas até mesmo seus momentos de intimidade são
contaminados pela paranoia e pela certeza de que serão descobertos.
O amor – romântico, familiar, fraternal – representa uma ameaça ao Estado
totalitário porque cria lealdades que competem com a lealdade ao Partido.
Por isso, crianças são encorajadas a denunciar pais, cônjuges são
incentivados a vigiar uns aos outros, e qualquer demonstração de afeto
genuine é vista com suspeita.
No contexto brasileiro atual, vemos ecos disso nas tentativas fascistoides
de regular e controlar as expressões de afeto entre pessoas do mesmo sexo.
Quando políticos de extrema-direita tentam definir legalmente o que
constitui uma “família”, quando escolas são proibidas de reconhecer a
diversidade de arranjos familiares, quando crianças LGBT+ são privadas de
representação e visibilidade, estamos vendo a mesma lógica autoritária em
ação.
O Estado fascista não precisa proibir explicitamente o amor entre pessoas do
mesmo sexo – basta torná-lo invisível, não reconhecido, marginalizado ao
ponto de ser vivido apenas em segredo e vergonha. É a aplicação prática da
Novilíngua: se não podemos nomear, não podemos ser.
A Resistência Inútil e a Capitulação Final
Winston captura nossa atenção não como herói, mas como homem comum que tenta
resistir a um sistema projetado para ser irresistível. Sua rebelião
permanece pequena, pessoal, fadada ao fracasso. O protagonista escreve num
diário, faz amor com Julia, sonha com um mundo diferente.
Mas o sistema supera qualquer resistência individual em tamanho,
inteligência e paciência. Winston acaba capturado, torturado, quebrado. O
final – que não vou spoilar completamente – devasta não porque ele morre,
mas porque genuinamente passa a amar aquilo que o destruiu.
Esse é o verdadeiro horror de 1984: não é sobre heróis que morrem lutando
pela liberdade. É sobre pessoas comuns que descobrem que sua capacidade de
resistir tem limites, e que esses limites podem ser encontrados e
ultrapassados por quem tem recursos suficientes para tanto.
1984 em 2025: O Futuro que Chegou Atrasado
Orwell imaginava 1984 como o ano em que sua distopia estaria completamente
implementada. O autor errou por algumas décadas, mas acertou no essencial: a
tecnologia de vigilância, a manipulação da linguagem, o controle da
informação, a polarização artificial da sociedade.
Nossa era transformou “fatos alternativos” em jargão político respeitável,
enquanto algoritmos decidem que informações recebemos e nossa localização,
gostos e relacionamentos viram commodities comercializáveis. Grupos inteiros
de pessoas desaparecem sistematicamente do discurso público em nome da
“moralidade” e “tradição”.
A diferença é que Orwell imaginou tudo isso sendo imposto por um Estado
totalitário centralizado. A realidade é mais complexa: nossa distopia é
descentralizada, gamificada, voluntária. Nós mesmos construímos e mantemos
as estruturas que nos controlam, porque elas vêm embrulhadas em
entretenimento, conveniência e a ilusão de escolha.
Por Que Você Deveria Ler (E Reler) Este Livro
1984 não é uma leitura fácil. É densa, deprimente, assustadoramente
relevante. Não tem final feliz, não oferece soluções simples, não deixa você
com aquela sensação reconfortante de que “pelo menos isso é só ficção”. E
definitivamente não é o manifesto anti-comunista que a CIA esperava
financiar.
Mas é exatamente por isso que é essencial. Vivemos tempos em que a
vigilância é onipresente, a desinformação é epidêmica, e grupos inteiros de
pessoas são sistematicamente desumanizados no discurso político fascista. Se
você vai viver numa distopia dirigida por autoritários de qualquer matiz
ideológico, pelo menos entenda como ela funciona.
Orwell nos deu as ferramentas conceituais para identificar e nomear as
formas que o autoritarismo assume na modernidade. “Novilíngua”,
“duplipensar”, “crimideia”, “Grande Irmão” – estes não são apenas termos
literários, são diagnósticos que se aplicam tanto ao stalinismo quanto ao
fascismo contemporâneo.
E talvez, só talvez, ao entender como funciona a máquina de controle mental,
possamos desenvolver alguma resistência a ela. Não a resistência heroica e
espetacular dos filmes de Hollywood, mas a resistência cotidiana e
necessária de manter a capacidade de pensar por conta própria, questionar
narrativas oficiais (sejam elas vermelhas ou verdes-amarelas), e preservar
espaços de humanidade genuína num mundo cada vez mais desumanizado por
fascistas de todos os tipos.
Porque se tem uma coisa que Orwell deixou claro – e que a CIA não conseguiu
censurar de sua obra – é que a luta mais importante não acontece nos campos
de batalha ou nos palácios do poder. Acontece na mente de cada pessoa, todo
dia, na escolha entre aceitar ou questionar, obedecer ou resistir, amar ou
odiar.
E enquanto ainda tivermos essa escolha, ainda há esperança. Mesmo que alguns
fascistas prefiram que não tenhamos.
Agradecimentos
Para mais análises de obras que nos ajudam a entender nossos tempos sombrios
e como autoritários de todas as cores usam as mesmas táticas, confira nossa
categoria completa de distopias. E se você chegou até aqui através do nosso
vídeo no YouTube, obrigada por dar uma chance ao formato longo – às vezes a
complexidade do fascismo moderno exige mais que soundbites de 15 segundos.
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